Para a população negra, acessar a universidade não garante o ingresso no mercado de trabalho

Por Daniel Cerqueira / Foto: Ono Kosuki / Pexels

Dez anos após a promulgação da Lei de Cotas, ainda há desigualdades entre grupos raciais no acesso ao ensino superior e, posteriormente, nas condições de inserção no mundo do trabalho. É o que mostra os dados de 2021 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de 2021, compilados pela consultoria Plano CDE, segundo os quais menos de 20% das/os discentes das universidades paulistas mais buscadas por empresas são pessoas pretas e pardas.

Viviane Soranso, coordenadora do Programa de Raça e Gênero da Fundação Tide Setubal acredita que os dados do plano CDE são um alerta importante para o campo do Investimento Social Privado, para as universidades e as empresas em geral de que precisamos nos organizar para fazer mais. “O acesso à universidade, que foi decisivo nessa última década para muitas mulheres e homens negros, não garante automaticamente o acesso a bons empregos porque é preciso mexer nas estruturas.”

De acordo com o Censo da Educação Superior de 2019, as/os estudantes negras/os representam 50,3% dos universitários brasileiros. Esse número é reflexo das ações afirmativas, que têm permitido o acesso de parcela significativa da população negra ao ensino superior. No entanto, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, apesar da Lei de Cotas, ainda há desigualdades entre os grupos raciais no acesso ao ensino superior. Em 2017, a taxa de escolarização líquida – que mede a proporção de jovens entre 18 e 24 anos que estão na universidade – para os brancas/os era de 51,5%, enquanto para negras/os era de 31,9%.

Quando olhamos para o ingresso desses estudantes no mundo do trabalho, a situação se agrava mais. Se, por um lado, as políticas afirmativas foram fundamentais para mudar a perspectiva de futuro de uma geração, por outro, os dados compilados pela Plano CDE mostram que apenas 16,1% das/os discentes das universidades paulistas mais buscadas por empresas são pretas/os e pardas/os.

O principal motivo de haver tão baixo número é que a maioria da população negra universitária provém de cursos superiores que não obtêm tanto prestígio na hora da contratação. Estudos mostram que as empresas sequer consideram as faculdades de menor prestígio no processo seletivo e 31,2% da população negra de São Paulo está nelas.O resultado, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) com base nos dados do IBGE, é que 37% das pessoas negras com ensino superior completo trabalham em cargos que exigem somente o ensino médio.

Para Maurício Prado, diretor da Plano CDE, estes dados devem servir para que as empresas enfrentem a questão da desigualdade de duas formas. “Ou elas abrem seus processos seletivos, dando oportunidades a egressas/os das universidades de menor prestígio, ou precisam se unir às universidades mais bem consideradas para pensar a representatividade nelas.”

Dez anos da Lei de Cotas

As ações afirmativas foram ferramentas decisivas para a inclusão da população negra nas universidades brasileiras. Dados e estatísticas mostram que essas políticas têm tido um impacto significativo na redução das desigualdades e na democratização do acesso ao ensino superior.

As ações afirmativas são políticas públicas que visam a correção de desigualdades históricas e estruturais, como o racismo e a discriminação social, através da criação de oportunidades para grupos que historicamente foram excluídos e marginalizados.

Antes da adoção das ações afirmativas, a população negra enfrentava enormes obstáculos para ingressar nas universidades. Segundo o Censo da Educação Superior de 2002, apenas 23,2% dos estudantes universitários eram negros. Esse número contrasta com o fato de que os negros representam mais da metade da população brasileira.

Em resposta a essa situação, em 2003 foi promulgada a Lei de Cotas, que estabeleceu a reserva de vagas para estudantes negros, indígenas e de baixa renda em universidades públicas federais. A lei foi implementada gradualmente e, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade das cotas raciais de 50% das vagas para estudantes de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos ou indígenas – a Lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, foi promulgada no mesmo ano.

Os resultados dessas políticas têm sido positivos. De acordo com o Censo da Educação Superior de 2019, estudantes pretas/os e pardas/os representam 50,3% de universitárias/os brasileiras/os. Esse número é um reflexo das ações afirmativas, que têm permitido o acesso de uma parcela significativa da população negra ao ensino superior.

No entanto, os desafios para a inclusão dos negros e negras nas universidades ainda são grandes. Um estudo do Ipea mostra que, apesar da Lei de Cotas, ainda há desigualdades entre os grupos raciais no acesso ao ensino superior. 

O Investimento Social Privado (ISP) pode – e deve – agir para reduzir essas desigualdades.

Investimentos na representatividade 

Como parte integrante do ISP, a Fundação Tide Setubal tem feito enormes esforços para contribuir nesse campo. Um exemplo é a campanha recentemente lançada de matchfunding dentro das estratégias Asas e Elos, da Plataforma Alas, para que instituições de ensino mais conceituadas, organizações sociais e empresas se comprometam com a implantação e manutenção de um programa de formação que tenham como eixo temático a empregabilidade e/ou o desenvolvimento educacional para o exercício de liderança e o acompanhamento dos/das jovens a longo prazo. Além de captar fundos para ampliar o acesso e permanência da população negra nos cursos de maior prestígio, as estratégias querem também promover reorganização dos seus funcionamentos.

Apoie a campanha de matchfunding da Plataforma Alas

Como alertou Viviane, esses setores precisam mexer nas estruturas para receber o financiamento. A ideia é que estes novas/os parceiras/os que estejam oferecendo oportunidades em suas instituições realizem um exercício de olhar da porta para dentro de suas organizações. “Estimularemos, assim, a reflexão sobre de que modo as instituições estão olhando para a diversidade no seu quadro de colaboradores: se for uma universidade, isso valerá para o seu quadro de professores, e assim por diante. Além das bolsas, esses parceiros precisam se comprometer internamente e se questionar: há pessoas negras em cargos de decisão nos nossos espaços?”

Dando play em reflexões

Outro ponto estratégico para o trabalho da Fundação Tide Setubal nesse sentido consiste no fortalecimento de trajetórias de lideranças envolvidas apoiadas por meio de iniciativas desenvolvidas com esse propósito. Essa dinâmica contempla também ações para influenciar o campo do investimento social privado sobre a necessidade de haver mais ações com esse mesmo propósito.

Essa premissa é o ponto de partida da segunda temporada da websérie Caminhos, que será lançada em breve no Enfrente, canal da Fundação Tide Setubal no YouTube. Composta por quatro episódios, a produção promove uma série de diálogos que passam por dimensões diversas, como processos de contratação em empresas, trajetórias de lideranças negras no campo político e como o campo do investimento social privado pode se tornar um ator estratégico nesse cenário.

Assista à primeira temporada da websérie Caminhos

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