Por Amauri Eugênio Jr. / Foto: Arquivo pessoal
Pioneirismo é uma palavra recorrente na trajetória de Luciene Rodrigues de Andrade. Seja na esfera profissional, como cofundadora de uma empresa de desenvolvimento de sistemas ou empreendedora social, ou acadêmica, no papel de mestranda, a sua caminhada é marcada pela recorrência em abrir portas e desbravar novos caminhos.
Em entrevista à Plataforma Alas, Luciene, que foi uma das lideranças apoiadas na primeira edição do Edital Traços, em 2020 – que era à época conhecido como Caminhos -, fala sobre a sua história e planos futuros, assim como sobre o seu mestrado em empreendedorismo na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), cujo foco de estudo está nas empreendedoras STEM (sigla que engloba ciência, tecnologia, engenharia e matemática em tradução livre do inglês).
Além disso, Luciene Rodrigues de Andrade fala sobre o papel da representatividade para influenciar mais mulheres negras a ingressarem nos segmentos relativos ao empreendedorismo e à tecnologia, o papel que iniciativas de apoio a pessoas negras têm em suas caminhadas e em âmbito social, assim como a respeito do pioneirismo acadêmico que tem em sua família – e ela garante que não será “a única, tampouco a última” de sua família a alcançar tais feitos.
Confira a íntegra do bate-papo a seguir.
Desde quando você se tornou uma liderança apoiada por meio do Edital Caminhos, como você considera que a sua trajetória no campo empreendedor foi potencializada? Por quais motivos?
O Edital Caminhos teve importância fundamental tanto para minha trajetória como empreendedora, quanto pessoal. Mais do que o apoio financeiro, o edital me proporcionou reconhecimento e acolhimento – e, por meio do suporte financeiro, a tranquilidade para traçar novamente uma rota de desenvolvimento e voltar a pensar em objetivos que tinham sido adiados, tais como o mestrado. Ter sido aprovada no edital me fez poder voltar os olhos para esse objetivo e me preparar para alcançá-lo. E assim aconteceu.
O empreendedorismo, sobretudo o feminino, é repleto de desafios e barreiras a serem derrubadas. Dentro da área tecnológica, acredito que eles sejam ainda maiores: sofremos com a descrença e com o preconceito diante da capacidade das mulheres de atuarem em áreas técnicas, que hoje são majoritariamente masculinas.
Ao voltarmos os olhos para a questão racial, esses desafios aumentam. Então, ser uma mulher negra atuando com tecnologia nem sempre é uma tarefa fácil ou uma situação comum diante dos olhos do mercado.
Você mencionou que, no seu mestrado profissional em empreendedorismo na FEA-USP, o seu objeto de estudo compreende empreendedoras STEM. Em sua opinião, como a sua experiência tem te ajudado a realizar a pesquisa nesse segmento? Você consegue traçar paralelos entre a realidade de empreendedoras das respectivas carreiras analisadas com a sua própria trajetória?
O interesse por esse tema está intimamente relacionado à minha vivência profissional e formação acadêmica na área tecnológica. Seja no dia a dia no meu negócio, ou dentro da sala de aula lecionando para turmas de graduação, vejo o quanto é importante abordar a atuação das mulheres nesses setores e como somos tão poucas.
As mulheres no passado foram protagonistas em descobertas científicas e tecnológicas que, em diversas ocasiões, não foram atribuídas a elas – ou, se foram, não em sua totalidade. Por exemplo, mulheres como Marie Curie, que fez descobertas grandiosas para a área médica com o uso da radioatividade, ou Antonia Brico, a primeira e única mulher até os dias atuais a reger uma orquestra filarmônica, e tantas outras precisaram desafiar todo um contexto social com sua genialidade. Mesmo assim, não tiveram o devido reconhecimento em vida.
Com o passar dos anos a presença feminina em áreas STEM foi sendo reduzida a ponto de termos hoje em dia poucas mulheres nessas áreas nos cursos universitários. Ao observarmos as mulheres do contexto STEM atuando como empreendedoras, esse cenário é ainda mais intrigante e demonstra uma escassez ainda maior. Mesmo com a alta demanda de profissionais, as mulheres atuantes em áreas técnicas estão em um número muito reduzido e, das que empreendem, poucas são provedoras de tecnologia – a maioria é consumidora dessas ferramentas.
É necessário investigar as razões pelas quais o empreendedorismo feminino no STEM é escasso, bem como o ambiente de negócios brasileiro em que elas atuam.
Um ponto abordado por você na websérie Caminhos dizia respeito à dúvida que indivíduos levantavam sobre o seu potencial para ingressar na área tecnológica. O fato de você estar em um mestrado eliminou a ocorrência de manifestações como essa? E como você considera a relação na FEA-USP com professoras/es e pares?
As pessoas ainda ficam surpresas ao me verem atuando nessa área. Por isso, ter a oportunidade de estudar em uma das melhores universidades da América Latina é derrubar essas dúvidas. Durante toda a minha trajetória, senti que eu precisava estar dez vezes mais preparada e mais qualificada em qualquer assunto para ter a oportunidade de ser ouvida.
Considero a sala de aula um dos meus lugares no mundo. Nestes intensos seis primeiros meses, tive o privilégio de encontrar pessoas incríveis na FEA-USP: colegas de turma, professores, um professor orientador muito próximo, solícito, consciente e que tem me ajudado muito a aprender a percorrer esse caminho. O suporte dados pela Associação de Alunos Negros da FEA (ANFEA) tem sido bem importante.
Os caminhos, trajetórias e oportunidades de formação dos alunos da minha turma foram bem diferentes dos meus. Por exemplo: estudo inglês até hoje, ainda não tive a oportunidade de fazer um intercâmbio para conquistar a fluência e isso me faz ter de demandar mais tempo para compreender o material de estudo que, em sua maioria, é em inglês. Muitos dos meus colegas já viveram foram e cursaram especializações em universidades no exterior. O que faço é fortalecer as minhas pernas para conseguir correr mais e não parar, como estudar por mais horas, buscar ajuda e fazer tudo o que for necessário para conseguir.
Durante a sua participação na websérie Caminhos, você falou sobre aspectos diversos, como apoio em níveis financeiro e emocional, desenvolvimento e criação de modelos para influenciar outras pessoas. Em sua opinião, como você considera que a sua trajetória é uma fonte de inspiração para novas lideranças negras?
Acredito que ao ter oportunidades de estar em locais como a FEA-USP, empreender atuando em uma área não comum para mulheres e muito menos para mulheres negras, é uma das formas de criar exemplos, de ser o desvio da estatística que aponta para a não existência desse tipo de representatividade.
Toda vez que alguém procurar entre os integrantes dessas turmas de mestrado, essa pessoa me encontrará. Essa é uma forma de incentivar meus alunos a entrarem nessas universidades. Empreendendo é provar que é possível.
Para mim, a promoção de mudanças precisa estar além da fala e do discurso: deve ser palpável de fato e acredito sinceramente que, ao percorrer esses caminhos, posso expor para as duas pontas meus pensamentos, opiniões e exemplificar com a minha vivência.
Quais você considera que serão os próximos passos para a sua trajetória profissional e acadêmica?
Os próximos passos que desejo seguir na jornada empreendedora é consolidar uma empresa que não precise ser enorme, mas que seja sustentável o suficiente para garantir que eu possa contratar pessoas, gerar segurança financeira e, consequentemente, uma vida melhor e com mais oportunidades para outras pessoas.
Academicamente, quero concluir o mestrado – se possível com excelência – e cursar o doutorado. Fui a primeira a cursar a graduação na família, sou a primeira no mestrado e serei a primeira no doutorado – mas não a única, tampouco a última. Tenho o grande objetivo de ser fluente no idioma inglês e fazer uma especialização fora do país.